quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Patos, patos, patos



O velho assistente Douglas Matrato apertou a fivela de arame da gaiola de patos e a ergueu com  esforço na traseira da caminhonete.

- Madame Rita Rica Sá aguarda-nos, pontualmente, para as dezoito horas.

A camisa pólo do velho assistente, em listras azuis e amarelas, agarrou-se de tal forma à gaiola que se desfez quase por completo quando a estrutura quicou na borracha do veiculo. O psicoterapeuta Marcus Bono Pino, formando da turma de 58 na universidade Bobone, com três de quatro citações possíveis no quadro de prodígios mantido pela instituição, levou três dedos finos e brilhosos à frente de sua boca. Emitiu um estalo agudo que por toda sua vida foi o máximo de que poderia expressar numa risada.

- Vai ter sopa?

O doutor girou a aba do seu panamá e bateu a ponta da bengala no chão, arremessando três pedrinhas em seqüência, razoavelmente longe.

- Mas obviamente teremos sopa, caviar, lagosta e mais. Exceto pato, definitivamente não os teremos. Não mencione patos, não discuta patos, não aluda a patos, não cheire a pato, não se movimente como pato.

O velho fechou a tampa e fungou suas axilas.

- Impossível não cheirar igual a estas aves depois de carregar mais de trinta gaiolas. Passemos em casa e tomarei uma ducha.

- É compatível – Respondeu o doutor conferindo seu Dumont. 

Dezoito horas na mansão da Madame Rita Rica Sá. A construção de ares coloniais, isolada da vizinhança por metros e metros de um jardim bem podado e diversificado, ladeado por dois caminhos de pedra mármore, um rústico para veículos e outro polido, para elegantes passeios ou saídas furtivas para a cidade. Postes de ferro se multiplicavam em tamanhos diversos para sustentar os globos de iluminação, alternando a luz até a entrada principal.  

“Pim, Pim, Póm, Póm, Póm, Pim”. 

Soou a campainha.

Abriu a porta um homem baixo e careca, vestido num puído casaco de camurça, um jornal debaixo do braço e careta de poucos amigos.

- Boa noite.

- Doutor Marcus Bono Pino, psicoterapeuta cinco estrelas.

- Boa noite e até breve, doutor.

O pequeno homem caiu ligeiro pela esquerda, tão rápido quanto à seca saudação, abandonando o psicoterapeuta cinco estrelas e seu assistente. Prontamente o “ploc, ploc” dos saltos da Madame Rita chegaram até a entrada.

- Doutor, que prazer recebê-lo em minha humilde residência. Como me foi instruído, dispensei Weberklein, o mordomo, que acaba de passar por vossa pessoa. Também liberei as demais criadagens, Alzira, a cozinheira, Almir Cavalo, o jardineiro e Toloco, o meu descanso de pernas.

- Perfeito, minha cara Rica.

Atravessaram em marcha imperial por dois extensos corredores ornados por quadros de Miró e Cavalcanti. As portas, coadjuvantes do trajeto, todas elas cerradas e rotuladas com pequenas placas, advertiam que “Esta noite é a noite da superação”. Por fim, despontou a sala de jantar.

À meia luz de candelabros italianos, a mesa de vidro retangular coberta por um delicado linho de cor vermelha, os pratos de porcelana grega repetiam o padrão de pintura, três damas segurando ramalhetes de açucena num campo verde, esperando a sopa, a salada ou a carne. As panelas de bronze também já dispostas liberavam o aroma da culinária. Sem os serviçais, cada um colheu o seu bocado entre variadas opções. Doutor Marcus rodeou o tablado servindo o cabernet sauvignon.  

- Quando quiser doutor, estou preparada para a parte pratica.

Na saleta da lareira, doutor Marcus Bono Pino riscou o terceiro fósforo para dar continuidade à brasa de seu cubano.

- Ao assinar este documento, madame, estará concordando com o procedimento psicoterápico que empreenderemos nesta noite. Estará sujeita a todas as metodologias que aplicarei.

Ela apertou o vestido violeta e sentou-se com os quadris largos no braço da poltrona oposta ao psicoterapeuta.

- Confio em todo seu histórico de curas. Confio em teus altos custos. E me entrego, apesar do terror que me toma às suas experiências.

- Veja bem, o que farei aqui é altamente experimental. Acredito que tua aversão seja, talvez, a mais ficcional que já lidei. Não existem, até o momento, registros ou estudos profissionais de tua desordem. Acredito que a madame está sendo induzida pela fantasia de um escritor, um desenhista qualquer, que tenha feito alusão ao tema e este passou pelos seus olhos de forma galopante. Cá estamos para trazer-te ao mundo real.

O doutor espremeu o charuto no cinzeiro de pedra e caminhou para fora da saleta, parando na porta ao lado de seu assistente.

- Confronte, sem agressividade. Confie em si mesma. Você é forte e nada vai te abater. Fique em teu quarto até as vinte e duas horas. Saia e ande por toda a casa, ou até onde puder ou ter vontade. Vemos-nos às oito da manhã. Não se esqueça dos exercícios de respiração.

A mansão, em contagem regressiva para as dez horas da noite, recepcionou a marcha de patos desengonçados, que o velho assistente Douglas Matrato desembocou pela porta da dispensa.  

- Vamos topetudos, entrando, entrando. Patinho, patão, pata, patona.

E “quá, quá” pra lá e pra cá. “Quá, quá”, entrou casa adentro. Grasnaram cada vez mais alto os patos do mato.

Numa guarita, da entrada próxima ao portão, o psicoterapeuta, doutor Marcus Bono Pino montou guarda e observou de binóculos as janelas amplas da casa. Dez horas badalaram. Madame Rita Rica Sá calçou sua pantufa de veludo e apertou a cinta de seda da camisola púrpura. Respirou fundo e abriu a porta.

Douglas lançava por todo o andar debaixo punhados de insetos, moluscos, peixinhos, e grãos. Bateu os braços, curvado ao chão e os patos trombaram uns nos outros e nas paredes, desordenados, sempre adiante. Pedaços de batata no pé da escada. Dez horas e dez minutos, era hora de cair fora.



- Os procedimentos foram executados?

- Certamente, doutor.

- Fechou a porta da dispensa?

- Esqueci, doutor.

Doutor Marcus espremeu as linhas de sua testa e Douglas girou os dedos impaciente, ciente de sua falta.

- Volto lá?

- Não, deixe. Estarão os patos distraídos com a comida.

Deixados os patos e a comida, restou a madame Rita apalpando o corrimão com as palmas suadas. “Flap, flap”, ela escutava logo abaixo.

- Asas! Óh, Deus, o ruído de asas!

O coração da balzaquiana trotou ligeiro, vibrando sua garganta. A respiração soprou na boca seca. E pequeninos olhos negros como caroço de mamão despontaram no último degrau. A madame soltou um tonificado “Úúú” pela boca, recostando-se na parede. O pato mascava meia carcaça de peixe.

- Olhando minhas pernas. Maldito a olhar minhas pernas.

Ela contorceu-se, os nervos paralisados. Inspirou e expirou. Lembrou das inúmeras passagens pelo consultório do terapeuta, o plano para um confronto cara a cara com o motivo de sua fobia.

- Hoje ou nunca. Vamos lá, Rita Rica Sá.  

Deu quatro passos e pulou direto ao quinto degrau da escadaria. Infelizmente escorregou em um agrupamento maligno de mexilhões. O desbunde acabou já no corredor térreo, atiçando cinco topetudos que esvoaçaram como puderam para não serem esmagados. Rita, de face amarela, ergueu-se levando alternadamente um pulso e logo o outro pulso em direção a testa.

- Ai de mim. Não consigo mais. A dor, o horror.



O horror, logo o panorama do inferno grafou-se em sua frente, por todo o lado. Patos, patos e mais patos. “Quá, quá, quá”. O grito alcançou a guarita e despertou o doutor Marcus e seu velho assistente Douglas Matrato.



- Opa, começou. Opa, vamos lá.

- Doutor, como faremos?

- Não faremos nada até as oito da manhã. E já fomos pagos. E mais do que todo este trabalhão, teria que cobrar mais e a mulher está falindo, com seus quadros e toda sua gordura.

Posto que o doutor nada fizesse, Rita afogou-se num ataque de pânico. Gritou e correu como os próprios patos do mato, selvagem e balançando seus pés desengonçadamente com o veludo fino das pantufas resvalando nos bicos duros e sujos dos bichos.

- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!

Louca, com os olhos de caroço de mamão por baixo de sua camisola, tentando conquistar suas coxas. Sentiu a primeira bicada, um belisco leve e o grasnar da vitória dos patos. “Quá, quá, quá”!

- Ainda não!

Chutou a bunda de três patos retardatários que se empanturravam com milho, derrubou dois Miró e quatro Di Cavalcanti. Finalmente, esbaforida, cruzou a sala de jantar e deitou na mesa de vidro. Caiu a louça grega no chão, coisa que irritou os patos. “Quá, quá, quá,quá,quá”.  

- Socorro, doutor Marcus. Socorro, bom doutor.

A súplica chegou redonda na guarita e prontamente Douglas levantou-se.

- O que está fazendo, meu velho?

- Oras, não ouviu?

- Ouvi algo que faz parte dos tratamentos mais ousados e bem sucedidos. Continue o pife. Vamos, meu velho.

Os patos abriram um semi-circulo ao redor da mesa e interromperam a nojenta refeição no meio da bagunça. Madame Rita deslizou na mesa encharcada com abundante suor, ao tentar se por de pé. Ouviu então um grasno cavernoso e mais outro e outro. Saltaram das estantes de cristais, os patos mutantes, medonhos, gigantescos.


Os patos gordos, que alimentam grandes famílias, saltaram com suas carecas vermelhas e o peito explodindo em um marrom opaco. Caíram em pares na mesa de vidro. O pranchão, tão grosso, não suportou o bombardeio e partiu-se em quatro, levando ao chão estilhaços, Rita e os patos gigantes, suculentos, mutantes. “Ao ataque” diziam aqueles olhinhos diferentes, azulados, craquelados.

- Cruzes! Santo Antão.

Rita Rica Sá teleportou-se da sala de jantar, com cortes por todo o corpo, descabelada, espavorida. Como um trem bala, zuniu na cozinha e agarrou o primeiro cutelo pendurado ao lado dos famosos salames da colônia de Witmarsum.

- Desgraça fedida.

Varava o vácuo, tilintando em panelas. Com pequenos avanços, patos loucos foram golpeados e sucumbiram por cima de batatas e temperos. Penas duras salpicaram o campo de batalha.

- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!


A grande pata choca, enfurecida com a morte de seus amantes, galgou até os peitos da Madame louca e os buzinou com um bico voraz. As unhas de Rita, esmaltadas em rosa grená, estrangularam o pescoço da ave e esta borbulhou vestígios de ração até o último grasnopiro, o derradeiro suspiro dos patos amaldiçoados.  

Já em frangalhos, o medo corrosivo das criaturas destrambelhadas, deu lugar ao ódio, a fúria, a coragem de uma mulher posta em grande perigo mental. Agarrou o pequeno botijão de uma lamparina empoeirada e riscou o cabeçote do fósforo. A mulher e sua tocha, endemoniada pela casa, soltando os lampejos do bafo do capeta nas penugens do caminho. A luz do fogo destacou-se nas janelas e a silhueta chamou a atenção dos vigias.

- Esplêndido, Douglas. Como uma pintura em um churrasco caipira. A mulher finalmente assumiu o comando.

Oito horas da manhã. O psicoterapeuta Marcus Bono Pino encaixou o chapéu panamá e flutuou como um lorde até a dispensa da mansão. Douglas saiu de dentro da casa e reportou a situação.

- As paredes chamuscadas, a tapeçaria em frangalhos. Objetos inúmeros, em cacos. Incrivelmente, todos os pobres patos mortos. Alguns varados por flechas, outros tostados, decepados, retorcidos, pisoteados, depenados, alguns pendurados e torturados com grampos. Na cozinha, há um pato com ervas e batatas, parcialmente cozido.

O doutor espargiu sua risada afetada de um só estalo. Bengalou três pedrinhas no chão e ergueu uma samambaia que estava caída na saída da dispensa.

- E aqui está a corajosa, a vencedora, madame Rita Rica Sá. Descansando em sua glória.

Rita afastou o cabelo de seus olhos e sorriu com dentes trincados. Douglas empunhou o braço vermelho dela e endireitou-a de pé.

- Parabéns, madame. O caminho era de pedra e você foi uma das poucas a traçá-lo.

Ela piscou inúmeras vezes antes de se pronunciar.

- Patos, patos, patos. Adeus patos. Adeus doutor. Curou-me. Recomendo-te. Teu custo alto me salvou. Recomendo-te. Melhor não há. Patos, patos, patos. Melhor não há. 

Com uma gorda gorjeta em mãos, o velho assistente Douglas deu a partida na caminhonete. O psicoterapeuta  satisfeito, bocejou sonolento. E a madame, ela espalhou aos quatro ventos sobre os bons serviços prestados. Dizia sempre, no chá da tarde, em meio à reforma da mansão, para seletas amigas.

- Não se afobem em manias, não se percam em fobias. Ele é bom e eu recomendo. Quer mais uma fatia, Madame Blavatsky?


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