quarta-feira, 7 de novembro de 2012

[Soletramento de Palavras]



É o que estava escrito na plaquinha da garagem aberta no numero 66 da Rua Apesares Cunha. Que, por ser ao lado da oficina de costura da Dona Diana, me aguçou a curiosidade. Deixei uma calça para acertar em dois dedos a barra e fiquei olhando o interior da garagem.

Uma mesa pesada, toda em madeira escura que cheirava de longe a óleo de peroba, uma cadeira remendada com pedaços de borracha disposta ao lado da mesa, quadros de antigas propagandas de tubaína preenchendo grande parte da parede descascada com cor de verde-desmaio.

Parado em um dos cantos, me observava um senhor de camisa social branca socada uniformemente na calça marrom, sapatos que também recendiam a óleo de peroba, as mangas dobradas até o cotovelo, girando uma bola de madeira lisinha contra um pedaço de estopa, aparentemente embebido em... Óleo de peroba.

- Estou em vias de trocar essa cadeira velha.

Surpreso com a fala do velho senhor, dei um passo para trás, sorrindo para amenizar a sensação de intrometimento que me assaltou.

- Ela combina com a parede descascada.

“Poxa, como assim?” Foi o que pensei por responder deste modo zombeteiro, mas o velho senhor deu um riso acolhedor que ergueu seu gordo bigode cinza escuro até os tufos de cima aninharem-se nas narinas.

- Tem dificuldade em alguma palavra, rapaz?

O velho senhor pousou a bola de madeira no tampo da mesa e aproximou-se de mim. Cocei a cabeça em sinal de dúvida.

- Dificuldade com palavras?

- Sim, veja só na placa: “Soletramento de Palavras”.

Achei graça com o inusitado cenário.

- E como funciona?

Ele pôs uma das mãos em meu ombro e com a outra levou até a frente do meu rosto uma espécie de cardápio, tão rapidamente que não consegui descobrir de onde havia pegado aquele papel.

[Soletramento por palavra R$ 5,00]
[Palavra estrangeira R$ 12,00]
[Encaixe de neologismo R$ 45,00]
[Junção de palavras R$ 5,00]
[Entropia Canalha à moda antiga R$ 120,00 por lauda]

Acabei por segurar o cardápio por mim mesmo e com muita curiosidade apontei para o que parecia ser o carro chefe da casa, o dito “Soletramento”.

- Muito bem, que palavra lhe aflige?

Vasculhei a mente colegial para pegar uma palavra qualquer que metia-me em apuros vez por outra.

- Excomungado!

- Como é?

- Excomungado!

- Comece a soletração dela para que eu investigue seu problema.

Já havia, mais de uma vez, muitas vezes, consultado o modo correto de escrever excomungado, seja em dicionários ou internet. Mas resolvi sacanear um pouco com aquela estranha prestação de serviço.

- E, S, C, O, M, U, M, G, A, D, O.

Ele ouviu e foi direto para a parte de trás da mesa. Voltou arrastando uma tina cheia de água. Colocou a cadeira remendada de frente com a tina. Sorri e cruzei os braços esperando o movimento seguinte.

- Rapaz, seu caso com essa palavra é grave, sente aqui na velha cadeira. Pode sentar que ela é firme.

Sentei para ver a mágica. O velho senhor pôs-se de pé ao meu lado, ambos olhávamos para dentro do recipiente. Foi então que ele segurou firme minha nuca e, com um empurrão, fui com metade do dorso pra dentro da tina. Foi tão repentino que acabei engolindo muita água, pela boca e pelo nariz. Voltei com tudo para a cadeira, mas não consegui levantar, por conta do choque. O velho senhor me fitava sério, coçando o bigode com a ponta dos dedos da mão esquerda.

- Soletre novamente sua palavra.

Balbuciei a palavra de maneira correta.

- E, X, C, O, M, U, N, G, A, D, O.

Então ele deu um grande sorriso e me levantou de uma vez.

- Pois veja só, rapaz, não vai esquecer como funciona a palavra.

Agradeci enquanto apertava uma toalha azul extremamente fofa oferecida por ele.

- Só cinco reais, por favor.

Dei a nota.

- O senhor sabe que soletramento não está correto?

Dito isso, ele chutou a tina com água até minha canela e socou minha barriga. Assim que me curvei em dor ele pressionou com ambas as mãos minha cabeça em direção a água.

- S, O, L, E, T, R, A, M, E, N, T, O.

E me soltou. Cambaleei até a calçada com vontade de correr daquele lugar. O velho senhor havia voltado a lustrar a bola. Olhou-me e com um dedo em riste deu um recado:

- Por conta da casa!

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