quinta-feira, 8 de outubro de 2015

ZARA, MIL DIAS DE IDADE


Apertou a luva pela quarta vez antes de entrar na saleta.
"Bom dia, doutor Renas."
De costas para a porta, doutor Renas acenou devagar, apontando para o que estava em sua frente na bancada.
"Davi, acenda esta luminária."
Debruçaram-se sobre uma caixa de vidro repleta de cascas de arvore e fios de cabelo.
"Bata na lateral"
Davi dedilhou rapidamente o vidro.
"São os momentos finais na vida da cobaia Zara."
O doutor apontou uma Go Pro em direção ao vidro.
"Eu sei, doutor, todos do laboratório sabem."
Ele olhou para o jovem Davi, arrepiando o bigode.
"Quase três anos alimentando a pão de ló essa gorducha, só pra ver ela completar o ciclo máximo de vida. Você acha que este experimento merece desdém?"
Davi, gentilmente, segurou a câmera, escorregando-a dos dedos do dr. Renas. Sorriu, desviando o olhar para o visor.
"Vai ganhar o Ignóbel, doc."
Riram. E um punhado de cascas remexeu-se, como uma onda vindo quebrar na orla.
"Lá vem! Filme tudo enquanto dou-lhe o que talvez seja a última refeição."
"E que não vai ser pão de ló, claro." Ironizou, Davi.
O doutor abaixou a cabeça até mergulhar a testa no vão do vidro. Seus parcos cabelos brancos abriram-se delicadamente na gravidade. Um ruído soava abafado, como um zíper, cada vez mais nítido.
Cascas e tufos aglomerados farfalharam pro alto. Antenas grossas como palito de dentes despontaram. Logo os globos negros da cabeça brilharam como plástico e junto, toda a grande carapaça caramelo queimado surgiu, resplandecendo na luz fria da lâmpada. As patas firmes naquele solo desarranjado, como talos espinhudos de uma rosa. Surgia Zara, a barata com mil dias de idade.
"Isso... É impossível, Renas." Engasgou em seguida.
"É apenas improvável."
"É repugnante. Isso que é."
"Você estudou meia vida pra ter nojo de uma simples barata."
Davi quase não podia olhar para aquela coisa desajeitada. De uma enormidade só vista nos mais esdrúxulos cartoons. A barata comia os fios de cabelo do dr. Renas. Rapidamente os fios sumiam para dentro daquela massa marrom do tamanho de um Big Mac, repugnando-o extremamente.
"É o suficiente, dr., por favor, ofereça outra coisa para esse monstro devorar."
"Esqueça, esqueça, apenas registre. Dados apontam que elas vivem mil dias, mas ninguém jamais viu uma barata de mil dias. Admire este Hércules dos esgotos."
Nauseado, Davi caminhou lentamente até a janela, cuidando para não perder o foco do cabelo a ser devorado. Abriu a lateral da portinhola. Dr. Renas berrou. Um único grito singular, desconexo. O som de zíper ecoou por toda a sala. Zara alçava um voo de altos e baixos na direção dos raios solares que invadiram o lugar.
"F-f-f-f-f-f-f-feche... id-d-d-d-d-diota..."
Tomado de medo, Davi não sabia o que fazer frente ao horror daquele Big Mac voador.
ziiiiiiiiip zzzzzzzzzzzziiiiiiiiiip
Ele jogou a câmera numa cadeira e bloqueou a passagem da janela. Pesada tal qual uma bola de tênis na chuva, Zara acoplou-se aos cachos encaracolados na cabeça de Davi.
"AOLOARRRRGH" Balbuciou afônico o jovem.
Dr. Renas debulhou metade de suas gavetas até empunhar uma rede.
"Vou capturar Zara"
Os fios de cabelo caíam em variados tamanhos de corte, grudando no nariz de Davi. Sentia os cravos das patas riscarem sua testa suada. A redinha chegando perto, do tamanho exato de sua cabeça.
"Vai prender nós dois, Renas, SAÍ PRA LÁ, Renas. Não, não, não... AOLOARRRRGH."
Era preferível o fim extremo do que o cativeiro junto a Zara dos mil dias. Agarrou uma prancheta dura com improvável firmeza.
"O que está pensando, meu jovem?"
"E-estou ficando calvo!"
Davi esbofeteou a própria testa.
Ziiiiiiiiip
Um estouro molhado. Como um peido em chuveiro quente, cinquenta tons de uma gosma acobreada cobriram toda a face daquele refém. Dejetos dependuravam-se em seu lábio inferior, trêmulo.
"Fique aí parado então." Comandou Dr. Renas, com atitude surpreendentemente profissional.
Pegou a câmera e passou a filmar o resultado.
"Dia mil, Zara passou por dificuldades e explodiu na boca de meu assistente. Relatório quatro mil e trezentos. Agora iremos revirar o ninho. Filhos e netos."
"Agora não, por favor"! disse Davi, com atitude surpreendentemente profissional.

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