sábado, 6 de maio de 2017

Zéfiro, o editor mendigo

 Z. fechou o livro suspirando. Olhou para o relógio de plástico vagabundo no pulso, em seguida encarou a pessoa sentada à frente de sua mesa.

― Qual teu nome mesmo?

― Andrômeda, está bem?

― Pois bem, Andrômeda… Há uma continuação?

O dedão dela escapuliu do salto pink como a sputinik-1 explodindo pela estratosfera.

― "Praga, Amore" é uma trilogia.

― Aham…

A saliva dele chegou à glote e extinguiu-se.

― Dez anos, Sr. Zéfiro.

Ele esmurrou o tampo da mesa.

― Dez anos pra terminar de escrever!?

Andrômeda viu as pontas da franja de nylon de sua peruca dobrando lentamente para o alto. As mãos enroscaram-se no vestido limão.

― Não, não. É o período que abranjo na trilogia.

― Tudo bem, senhorita. Gostei do teu talhado com a escrita. Segue bem nossa linha editorial. A história tem apelo.

Ventilou. A voz da autora subiu duas notas em um “viva” infantil, masculino.

― Você é transgênero?

― Transpraga, amore. ― Piscou.

― Ótimo. Fantástico. Dedicada. Que seja um exemplo de grande conquista conosco. Vamos estar em todas as bancas de jornal do país. Papel jornal, capa de Emilio Buzzcarette, o escambau.

― Espera! Escrevo para estar nas grandes livrarias…

― Acha que vai sobrar alguém pra entrar numa livraria pra ler melosos romances sanguinolentos após a terceira grande guerra de memes?

― Eu estou com fome de sucesso.

― Coma o pãozinho com queijo aí na mesa.

― Vamos fingir que você é Estevão e eu sou Alenia e irmos para Praga escrever in loco um quarto volume.

― Uma quadrilogia?

― Uma saga para livrarias.

― Mas a guerra…

Ele apontou para o céu estrelado.

― Dane-se a guerra. ― Andrômeda cuspiu longe.

― Esqueça as livrarias, você escreve…

― Escrevo o quê?

Descolou um veio na testa vermelha de Zéfiro.

―  Apenas, esqueça.  E ainda não li suas continuações.

Ele recuou no trato.

― Sabe o que tenho aqui, comigo? ― Ela bateu os dedos de leve na virilha.

― Uma faca.

Ela mordeu o lábio.

― Oras, como sabe?

― Sua peruca ruiva, sua roupa camaleônica, seu nome estranho.

― Estou emulando?

― Está. Eu gosto.

― Estou convencendo?

― Está.

― Te excito?

Tal qual uma cegonha pensando se era seu trabalho entregar bebês ou continuar uma vida livre e selvagem, com tamanha dúvida cruel, apenas por ter entreouvido uma conversa entre madames num parque aquático no verão de 75,  Zéfiro titubeou na hora H, de um bote do qual os dois não queriam escapar.

― Sabe tocar berimbau?

Ele fez que procurava algo (um berimbau) numa pequena sacola.

― O que isso tem a ver, Estevão? Falemos de Praga.

Tamanha sensatez da parte dela deu charme à continuação daquele quadro de tons quentes. Qualquer abóbada apequenar-se-ia diante da pincelada  que a alma de ambos dava na tela da vida.

― Tem tudo a ver com o Brasil. Você já foi à Praga?

― Vi muitos filmes.

― Tipo?

― Missão Impossível.

Ela cantarolou com voz de Tony Bennett a trilha famosa. Parou um pouco pra sentir a reação de seu par, pensando se voltava para o puro Business-to-business ou avançava como dama fatal escritora pródiga brega de Praga.

― Droga, este foi bom mesmo.

Ela aliviou-se ao ponto de gotinhas molharem sua cueca de plástico Carrefour.

― Então?

― Então você, escritora. Papel jornal, tiragem de vinte mil. Que tal?

Ele parou de falar, coçou o bigode e retornou.

― O quê está fazendo?

Ela esfregava uma maçaroca vermelha nas bochechas covas. Tão natural quanto um recheio de canelone abraça o presunto com mussarela, destinados ao mais tórrido dos fornos. Que lhe custasse a vida, “Ztratil jsem se”, na Tcheca.

― Retocando o rosto.

― Uma mascara? Parece o ato final do que acabei de ler.

― É, mas espero ir embora com um adiantamento.

― E eu sem estar morto. Não posso ser um editor morto. Falido sim, morto?  Nietzsche!

― Seu escritório é num beco.

― Por que veio então? Literatura não dá grana.

― É o beco mais Praga que já vi. Suas botas furadas, seu cheiro de mijo, homem trabalhador.

Andrômeda começou a dançar uma valsa solitária, ao mesmo tempo em que tentava triscar um isqueiro na ponta do cigarro torto.

― Não tem medo que a policia confisque este seu carrinho velho do Pão de Açucar?

― Por onde acha que eu ando, meu amor? A policia não se importa comigo.

― Tua trilogia veio neste carrinho?

― Coloque mais papel no tambor. Que o fogo arda.  Vamos quebrar a quarta parede.

Ela debruçou-se num quadro de energia e esticou o pescoço até um facho de luz inundar seu rosto, o editor fez um paralelo visual com Marlene Dietrich. “Será possível?”, ponderou.

― Estou vendo. Um chinês gordo fatiando um pato e muita gente na fila de espera.

― Queria estar lá dentro?

― Meu negócio é Praga.

― Vou te lançar agora, daqui do Pari.

― Daqui para o mundo?

― Mas só tenho as bancas de jornal a te oferecer.

Chutou um rato que bambeava numa poça.

― Eu aceito, sem escárnio, apenas aceito.

― Se soubesses como eu gosto do teu cheiro, teu jeito de flor, não negavas um beijinho a quem anda perdido de amor.

― Vinicius de…

― Tom Jobim, pelo amor de Medusa.

― Deite sua língua no céu da minha boca, Zéfiro.

― Mas acabaste de comer pãozinho.

― Tira de canto esse teco. Tira (sussurro), tira (sussurro).

As bocas-desejo enroscaram-se entre barbas e a dança incerta daquela noite transcorreu com um aroma delicioso de corpos apaixonados.  O livreto dobrado e gasto de Praga, Amore, até mesmo ele, foi esquecido, pisado, chutado para dentro do bueiro. A carreira de outrem chegara ao fim nas mãos de amantes mendicantes, sonhadores de uma fantasia tão distante quanto o que sobrara do Brasil pós guerra de memes. Andrômeda beijava de olhos abertos, atenta ao seu companheiro, pois esperava sua vez de poder ver o reflexo das luzes tremeluzentes. Certamente, jamais voltaria a escrever.

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